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a mão reflexiva
gesto e pensamento nas práticas contemporâneas

Nós Galeria - Torre de TV

Exposição coletiva

Curadoria: Mariana Coggiola

Brasília, DF

Novembro / 2021

A diversidade de modos de produção pode ser entendida como pressuposto essencial da arte no contemporâneo. Livre das funções históricas que delimitaram sua prática ao longo do tempo, a expressão artística encontra-se, no século XXI, emancipada das amarras funcionais da ilustração e do didatismo, do formalismo e academicismo, operando para além dos campos da contemplação, pedagogia ou efeito sensível puro. Essa cisão, seguida e precedida por tantas outras, garante ao artista no contemporâneo um estatuto de inédita liberdade: o procedimento artístico hoje pode se valer de amplos repertórios poéticos e técnicos, oriundos das mais diversas experimentações realizadas através da história. Partindo dessa premissa de liberdade, apresentamos aqui uma reunião de obras e artistas que se originam de diversas gerações e contextos, e que dela se valem através de uma multiplicidade de linguagens e veículos expressivos.

Em sua segunda apresentação e primeira itinerância, a exposição leva ao público de Brasília um novo conjunto: além do núcleo de obras que a compôs na inauguração da Nós Galeria em São Paulo, estão aqui presentes outros recortes da produção dos artistas que a integraram em sua primeira elaboração. Ademais, e de forma inédita, foram acrescidos à mostra três artistas. Alexandre Nóbrega, Iaco Viana e Rafael Prado compõem com o conjunto partindo das mesmas premissas de trabalho e hibridismo técnico, ampliando o diálogo entre procedimentos operativos e metodologias criativas deste agrupamento.

Embora singulares em termos do emprego da técnica e discurso, é possível estabelecermos correlações na maneira como os artistas aqui presentes associam seu fazer artístico com a ampla noção de trabalho. Do ponto de vista do procedimento, os oito artistas que compõe a mostra se utilizam de técnicas e metodologias que por vezes tangenciam os universos do design, das artes aplicadas e artes gráficas, da comunicação e até mesmo dos procedimentos industriais, empregando materiais e métodos próprios do universo da construção civil e da tecnologia – como visível no uso do cobre de Niki Nomura, no concreto de Rafael Sanches, nas placas de circuito de H4wnee ou na linguagem cartográfica/arquitetônica de Isabela Etchenique. Essa interdisciplinaridade, que neste conjunto compreende também a retomada de práticas manuais e religiosas, pode revelar e afirmar uma intenção de retomada de diálogo com ideia de função - esta, tão rechaçada por seus antecessores de vanguarda e ao mesmo tempo amplamente recuperada pela pluralidade da produção contemporânea. Na obra de Ana Luísa Araújo é possível perceber que a gestualidade explicita a fatura fundamentalmente manual da obra, seu índice gestual e humano, aparente também nas impressões de Isabela Etchenique, cujo empreendimento físico de gravação na matriz cobre resulta em impressões que aludem às técnicas ancestrais de reprodução - ambas vinculadas à uma noção clássica de técnica, utilidade e trabalho.

A prática experimental e pesquisa empírica de Iaco Viana traz à tona a necessidade da manipulação investigativa para o entendimento pleno do suporte e dos materiais. Sua ação construtiva perpassa pela observação atenta das interações entre insumos pictóricos distintos, cujas bases não se aglutinam entre si, num aceno à impossibilidade de coexistência entre os tipos de paisagens que o próprio artista descreve: ao enquadra-las em painéis regulares, Iaco Viana questiona a própria ideia de paisagem por oposições. Suas paisagens naturais, domésticas e urbanas coexistem em estado suspenso e utópico, sobrepondo-se e devorando-se entre si, numa batalha cristalizada cujo resultado prevalente o artista não revela. Sua execução se assenta fundamentalmente sobre a pintura e seu vocabulário particular, território onde o punho e a gestualidade de imperam sobre a necessidade de presença de uma norma figurativa mais objetiva.

O sociólogo François Vatin identifica que “o conceito de trabalho aparece verdadeiramente no momento em que a mecânica prática e a mecânica racional puderam se juntar (...). Essa junção se opera entre os séculos XVIII e XIX, entre 1780 e 1830, aproximadamente. Ela é contemporânea da revolução industrial e do nascimento da economia política clássica”. Sendo assim, é possível afirmar que a emergência da revolução industrial traz à tona a questões relativas à divisão do trabalho entre duas frentes distintas: uma que diz respeito à prática mecânica e outra à concepção intelectual de um produto ou obra. É nesse momento que o fazer artístico se vê obrigado a acompanhar as novas organizações do trabalho e se coloca diante de um dilema processual que o acompanhou até tempos recentes: a fragmentação entre conhecimento teórico e conhecimento prático. Ainda que agudizado pela popularização das máquinas e aplicação de técnicas mecânicas no universo do trabalho, o desmembramento do fazer artístico em duas frentes é mais antigo do que o conceito de trabalho pontuado por Vatin. É no medievo que se estabelecem as diferenças essenciais entre as Artes Liberais, praticadas pelo homem livre e Artes Mecânicas, praticadas pelo homem servil. As artes liberais, baseadas na aquisição de educação erudita, compreendiam o estudo de dois conjuntos de saberes: o Trivium - a gramática, a retórica, a dialética -, e o Quadrivium: a música, a astronomia, a aritimética e a geometria. As artes mecânicas, servis e vulgares, eram consideradas impróprias como atividade para os homens livres. Posto isso, o homem sensível e livre afasta-se da sina e do status do artesão ou do trabalhador manual para dedicar-se à aprendizagem dos conhecimentos teóricos que só a ele eram acessíveis. A busca do artista por se diferenciar do trabalhador subordinado culmina numa separação que conferia ao saber intelectual um alto valor, maior do que aquele atribuído aos saberes técnicos e práticos próprios do trabalhador-artesão.

Nesta nota, destaca-se o trabalho de Alexandre Nóbrega. Sua obra, articulada por entre os domínios da pintura/gravura/desenho, é a expressão ideal da coexistência entre a imagem técnica e a gestualidade livre. Na disputa com a rigidez da matriz o registro orgânico do artista vence: seu gesto submete a resistência dura da matriz original e revela as linhas sinuosas, imperfeitas e humanas de seu desenho. Por entre camadas de impressão e pintura, a artesania do artista se faz visível na expressividade de suas sobreposições. A mansidão bruta de suas texturas é produto visual que nenhuma máquina ou procedimento industrial por si só seria capaz de lograr, e a simplicidade de seu traço alude ao que existe de mais primordial no estabelecimento dos primeiros fonemas do vocabulário gráfico do ser humano. Sua obra conversa com visões do passado, com formas originárias e padrões ancestrais, e se utiliza de técnicas de reprodutibilidade com a consciência de um dicionário universal de símbolos.

A despeito da nova circunstância de liberdade do artista, a condição subalterna de artesão imprime até hoje um certo tipo de tabu sobre o campo das artes visuais. A prática artística demandou necessariamente, ao longo da história, um ofício manual do artista – o emprego ativo do corpo e das mãos com uma finalidade determinada. Não podendo se furtar à natureza do trabalho, a técnica do artista buscará uma denegação do próprio trabalhar (denegação da subordinação) para afirmar sua condição de liberdade nos tempos modernos. Não à toa esse percurso encontra sua expressão máxima no conceitualismo americano de Joseph Kosuth, que postula a superação da materialidade da obra e edificação de uma categoria de arte unicamente calcada nos artifícios da linguagem e do pensamento abstrato, exclusivos do homem livre. Nesse movimento histórico, o artista, excepcional em oposição ao homem servil, legitima a regra da exploração dos não-excepcionais – nessa concepção, a imensa maioria dos trabalhadores não-artistas, lugar ocupado por aqueles cujo ofício acarreta o emprego ativo do corpo e das mãos, separados, equivocadamente, do pensamento e do conhecimento teórico.

Como produto desse tipo de desenvolvimento histórico, a arte contemporânea é comumente associada, no imaginário comum, à um certo tipo de auto-referencialidade por vezes estéril. O conceitualismo como regra do contemporâneo encontrou sua exaustão nos efeitos perniciosos de um jargão obscurantista que dominou seu território às custas da exclusão das artes ditas populares, aplicadas e decorativas. Ao enaltecer apenas o artista que busca se notabilizar pela excepcionalidade intelectual como forma de escape à subordinação manual, o establishment artístico acaba por aprofundar a subordinação daqueles que considera não-excepcional – a vasta maioria dos artesãos e não-artistas envolvidos no trabalho fabril e mecânico, considerado degradante e produzido fora do contexto de liberdade. O produto disso é a consagração de um meio artístico onde a arte que é produzida por distintos (excepcionais) e para distintos chancela a barbárie contra a maioria trabalhadora, artesã e indistinta, que executa sua produção longe de questionamentos acerca da subjetividade singular de si como artista. Este meio, exausto e anacrônico, é aquilo que opera na contramão da premissa de liberdade investigada pelos oito artistas em exposição.

A pintura matérica de Rafael Prado é também consciente destas distinções. Ao privilegiar a pintura como veículo, o artista fala de um modernismo brasileiro falecido e obsoleto, utilizando-se da paleta como recurso de leitura indireta de suas intenções. Ao contar a história a contrapelo da Amazônia, Rafael constrói sua pintura como um acúmulo de decisões pictóricas, tal qual o acúmulo de decisões políticas e históricas que desenharam os contornos irregulares sua terra natal. Suas imagens são construídas elogiando as cicatrizes e marcas próprias da superfície pictórica, a impolidez inerente ao reaproveitamento e sobreposições deste tipo de material. A quebra da utopia e tensão entre mito e realidade do norte brasileiro constituem a narrativa sobre a qual o artista se calca, numa produção que não apenas ilustra uma narrativa histórica alternativa e mais real do país, mas também adiciona a ela sua característica de esforço e emprego físico e humano.

Em meados do século XIX surge o conceito de art pour l'art – arte pela arte. Como prática, reputava a ideia de que os efeitos sensíveis eram o campo privilegiado do fazer artístico, vinculado de maneira mais firme à noção de contemplação passiva de seus próprios elementos compositivos. Os sentidos permaneciam, portanto, desvinculados da ideia de conhecimento e saber teórico. Incomodado com o princípio da excepcionalidade e da exceção, o crítico de arte John Ruskin – pai do movimento Arts & Crafts perpetuado por William Morris na Inglaterra -, considera que “(...) a arte não é questão de gosto, mas envolve o homem inteiro. No seu fazer ou na sua percepção, imprimimos sobre a arte sentimentos, intelecto, moral, conhecimento, memória e qualquer outra capacidade humana, todas focadas como um raio direcionado a um único ponto. O homem estético é um conceito tão falso e desumanizador quanto o de homem econômico”. A preocupação primária das indagações de Ruskin dizia respeito à reassociação da arte com trabalho - e por consequência com a produção de conhecimento. Sua crença se calcava na ideia de que a arte só reinaria plena quando os artesãos se tornarem artistas e os artistas artesãos. O crítico não buscava uma nova conceituação, mas sim o estabelecimento de uma prática onde a arte não se colocava como objeto passivo e o artesão não se reduzia ao papel de técnico/mecânico. Buscando a defesa de que o principal propósito da arte é servir as verdadeiras funções da vida diária, Ruskin entendia que a corrupção da arte era o esquecimento das pessoas: tanto de quem consome quanto de quem produz. A separação ocorrida entre artista e artesão feria ambas as partes e resultava no afunilamento de seu apelo, além do empobrecimento dos objetos não-artísticos de uso comum. Nesta nota se insere o trabalho de design do artista Rafael Sanches, cuja pesquisa se direciona, entre outros desdobramentos, no sentido da utilidade social do empreendimento artístico. Ao direcionar sua exploração ao objeto de uso, o artista ganha a possibilidade de universalizar a arte e enobrecer o próprio trabalho, de acordo com o princípio ruskiniano de que a arte potente enobrece as pessoas, não no sentido da nobreza, mas sim de sua dignificação.

Os efeitos perversos da divisão do trabalho não se limitam à ferida do produto e daquele que o produz: “não é o trabalho que se divide, mas sim o homem, que se torna um apanhado de segmentos e migalhas desconexas de vida”.4 Também pela perspectiva do trabalho via artes aplicadas se situa a obra de Laura Falzoni, que acrescenta ao ofício do design e das linguagens técnicas de captação e impressão de imagem a organicidade de seu registro manual. Os enfrentamentos de ambos os artistas colocam em cheque o anacrônico problema do design e das artes decorativas, que como campos criativos superam aqui o seu estatuto inferior, em função da prédica de utilidade, e passam a ganhar terreno dentro do escopo das grandes artes cristalizadas como eruditas.

O discurso tecnicista ou tecnocrático de utilidade se coloca como obsoleto dentro das proposições poéticas dos artistas deste conjunto. Nesse sentido, a obra fotográfica de Roncca revela a ambiguidade de função de uma imagem fotográfica, que é, por excelência, uma imagem técnica com função determinada. Aquilo que à primeira vista poderia ser interpretado como fotografia documental ou de retrato ganha dimensões de universalidade sob a ótica de Victor Ronccaly, que encontra em seus exames de diversos entornos uma série de índices da força humana inerente ao trabalho artesanal e popular. Através do registro de práticas religiosas e manuais circunscritas ao campo das tradições populares, o artista lança luz sobre o vigor e importância dos conhecimentos espontâneos próprios das manifestações expressivas desse caráter. A ideia de transcendência do peso histórico das tradições locais em alinhamento com sua valorização e resguardo é essencial para o pensamento crítico do contemporâneo, e na obra fotográfica de Roncca são as vivências do espaço e experiências com o entorno que operam como a própria elaboração teórica do trabalho. Sua fotografia produz conhecimento sobre esses contextos em particular, onde prática e saberes inter-geracionais ainda se manifestam simultânea e indistintamente.

O campo do fazer artístico é território privilegiado para o exercício de superação social da divisão entre trabalho intelectual e manual. A elaboração de R. Mandolfo sumariza com transparência essa necessidade: “[se faz necessária a] Superação dialética daquilo que foi a base da emancipação humana e de sua alienação: a antiga distinção entre dois tipos de vida humana – o homo faber e o homo sapiens -, orientados, o primeiro, para a criação prática da técnica produtiva e o segundo para a reflexão contemplativa e a ciência pura; ou seja, um vinculado ao uso da mão e o outro ao uso da inteligência”.5 Seria impossível pensar, por exemplo, na obra de Bros sob essa lógica de fracionamento. Mario aborda a construção de seu universo poético a partir de uma prática que engloba sua experiência com arte-educação e tatuagem, ambas atividades que remontam ao papel ancestral do xamã e da invocação ritualística. Essa prática, solidamente vinculada à uma função social bem delimitada, encontra vazão através da manualidade do desenho da tatuagem e da aplicação pictórica de seus conhecimentos em pintura sobre tela. Nestas imagens, a complexa trajetória de papeis e referências que permeiam a obra revela a necessidade de uma recomposição unitária: um indivíduo artista-xamã uno, que além de educador é artista-tatuador, e por essa via imprime as marcas que explicitam a fatura manual/espiritual de sua obra.

Ainda que historicamente autorizados a realizar uma exploração da forma que poderia culminar na prática da art pour l'art ou na funcionalidade pura, é perceptível no presente conjunto tanto a reafirmação de certos tipos de conhecimento - dos campos técnico/processual e poético/expressivo -, quanto no desejo de elaboração de novos instrumentos de observação da realidade. Busca-se, na exposição, a reafirmação do conhecimento que se dá através da experiência sensível. E esse mesmo vínculo estável da arte com a produção de saberes é um fenômeno relativamente recente na história da filosofia: é apenas em Merleau-Ponty que encontramos um bom acordo entre as artes e as ciências, na primeira elaboração sólida acerca da junção do fazer artístico com a produção de conhecimentos, presente em sua Fenomenologia da Percepção. O objeto artístico era, até então, produto afirmativo de um conhecimento a ele pré-existente, incapaz de instituir um saber alheio aos conhecimentos já estabelecidos no território científico. Para Merleau-Ponty, a prática artística pode estabelecer a educação pelos sentidos, que pela primeira vez alcançam o estatuto de instrumentos confiáveis na produção do saber.

A abolição do juízo qualitativo entre saber construtivo e projeto conceitual também ganha força na obra tridimensional de H4wnee. Seu trabalho, que aglutina em superfícies portáteis um volume inversamente proporcional de acúmulos histórico-teóricos, se constitui, entre uma miríade de técnicas, de uma fluência virtuosa na prática tradicional da moldagem. Nele é possível observar com clareza a possibilidade de um elogio da máquina que não subestima o valor da vida humana. A união da prática artística manual com indícios das recentes revoluções tecnológicas encontra sua epítome nas figuras mitológicas de H4wnee, que carregam consigo, e em igual medida, o escárnio pela desumanização maquínica do mundo e o latente desejo pela recuperação da experiência religiosa solene e transcendente no contemporâneo.

A reflexão não é um privilégio da consciência. O corpo sofre do visto, do tocado e do movido. A necessidade de recuperação da unidade entre os binômios arte/trabalho, homo faber/homo sapiens, utilidade/contemplação, arte popular (artesanato)/arte erudita (belas artes) é também a necessidade de criação de interseções mais compreensivas no amplo campo do conhecimento e da expressão humana. Ao salientarem o caráter reflexivo do corpo e das mãos, os artistas aqui reunidos, cada um à sua maneira e com diversos pontos em comum, encaram com veemência a intricada tarefa de produção de sentido para uma realidade cada vez mais complexa. A superação dessas dicotomias ganha fôlego quando uma produção artística interdisciplinar dessa natureza encontra abrigo em um espaço como o da Nós Galeria, jovem ambiente de trocas e de valorização da diversidade. Este encontro age no sentido da conservação dos saberes humanos numa unidade superior, talvez a unidade da arte em si, que pode encontrar finalmente paz em sua renovada função de síntese superadora.

Texto: Mariana Coggiola

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