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A pintura de Rafael Prado é carnívora. Seleciona, prepara, come e digere os corpos humanos dentro da cozinha pictórica. Aprecia o tempo de maturação da carne, no qual as referências que coletantam até se mostrarem pertinentes ou não aos seus interesses artísticos – adquirem certa maciez e sabor. São elas: as experiências de uma vida sul-amazônica, cercada de conflitos sócio-políticos em meio a uma paisagem emblemática; o olhar atento às iconografias do tempo presente; e a história da arte, campo de conhecimento em contínua reconstrução.

Encarar uma pintura tão carnal requer sempre alguma dose de coragem. Lidando com imagens e conteúdos de modo cada vez mais direto, Rafael traz uma realidade nua e crua. Como nos apontara Gertrude Stein: “uma rosa é uma rosa é uma rosa é uma rosa”. Mas não se engane – não é uma vontade de representação fidedigna e literal. Nas telas, mesmo as referências mais diretas do real ganham outras camadas e fazem com que a imagem pictórica tenha sua própria força, transbordando o político. Do genocídio indígena ao carnaval, suas imagens vão revelando familiaridades e estranhezas, marcadas pelo que todos nós temos em comum: o corpo.

Não à toa, seu fazer emerge de cores intensas, tendendo ao vermelho, ao quente e ao vibrante. Rafael opta por uma paleta econômica; lidar com as cores é uma negociação delicada. Se para Hélio Oiticica a cor é a revelação primeira do mundo, para Rafael Prado a primeira cor que se nos revela como tal é o vermelho, tamanha sua vibração e urgência quando aprendemos a associá-la ao sangue e ao fogo. No tupi-guarani, Brasil significa “vermelho como brasa”; este vermelho consome nossas florestas (e, eventualmente, nossos equipamentos culturais), jorra dos corpos marginalizados e revela nossas urgências. É uma comida indigesta, mas há fome.

Mais recentemente, esse processo carnívoro encontrou um caminho na autofagia: comer a si num gesto simbólico de sobrevivência, sacrificando algo de si mesmo. Políticas de autodestruição costumam usar este tipo de discurso para justificar a exploração de sua própria população. A dúvida reside no quanto de si se pode comer e ainda se manter por inteiro.

Em meio a referências sombrias, há jocosidade e leveza no modo como Rafael Prado experimenta, seja nos temas quanto na sedução da forma. Algumas de suas telas nos assustam, mas outras até são capazes de nos provocar sorrisos. Como lembrança da inescapável e quase centenária antropofagia, “A alegria é a prova dos nove”, e uma degustação despretensiosa de suas imagens pode ser bastante deliciosa.

 

Bruna Costa

15/08/2021

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