miragens
Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica
Exposição coletiva
Curadoria: Marisa Flórido
Rio de Janeiro
Maio / 2017
ASTELLA
Não se acessa a cidade de Astella por trem, barco ou no lombo de um burro, mas por um dispositivo óptico. De tal modo que avistar Astella é já nela chegar, dúbia condição de quem a vê: afastado de suas ruas e do céu que a abriga, mas nela inserido por um efeito especular.
Não se sabe ao certo quem planejou Astella, que desejos a conceberam, que infortúnios a protegeram nas distâncias dos reflexos, que venturas ainda nos promete sua insistente morada. Narram os livros, que se multiplicam na vasta biblioteca que compõe este mundo, que ao longo dos séculos de sua existência, Astella possuiu diversos desses artifícios. Como uma espécie de câmara em que, por detrás do painel e por um orifício nele aberto, o incauto e exaurido viajante era colocado para contemplá-la no reflexo de um espelho. Um lugar assinalado pela reflexividade entre aquele ponto, que ordenava o horizonte de Astella, e o olho que o mirava. Dizem mesmo que a história de Astella se confunde com seu permanente duelo com o horizonte, com suas linhas e promessas, suas fugas e esquecimentos, suas guaritas e abandonos.
Muitas fábulas nos chegam de Astella, como aquela de um jovem de alcunha Diderot que insistiu em alcançar Astella por uma luneta. Essa prótese ocular seria capaz de abraçar veias, nervos e alma de Astella, e excluir o que estivesse à margem de sua epiderme. O único meio, dizia o rapaz, de entrar na cidade seria por uma “ficção suprema”: um efeito de presença obtido pela imaginação capaz de manter o viajante a uma distância segura, mas inscrevendo nela seu lugar. “Colocai a luneta entre vós e Astella, olhai e vereis a própria Natureza”. Se logrou seu intento pouco importa, certo é que ele adentrou os livros nas prateleiras que nos cercam como um labirinto, ora como personagem da história, ora como literato, ora como personagem fictício dos contos que animam as páginas e as esquinas.
Astella é aqui a cidade que se acessa por um caleidoscópio, um cilindro formado por espelhos em forma de prisma que, através do reflexo da luz, tece combinações variadas. Passe de entrada e roteiro mutante, o caleidoscópio de Astella é formado por um número infinito de espelhos, um número infinito de ângulos entre os planos especulares, e um infinito de galerias e ruas prismáticas que deles se desdobram, de tal modo que os trajetos, entroncamentos, encruzilhadas, desvios são igualmente infinitos, contingentes e inesperados. Para desvendar Astella, talvez bastasse descobrir o traçado e a geometria dos raios de luz que a criam, mas quanto mais nos aproximamos dessa cidade, mais os reflexos se multiplicam, mais um inusitado fenômeno se reproduz: os objetos e seres que os geraram invadem o cilindro confundindo-se com as imagens. Bambolês e mesas, transeuntes e moradores, monumentos e gestos então orbitam na alucinação dos espectros e das esquinas. A tal ponto que chegar à cidade de Astella é ser sorvido na voragem do caleidoscópio, arremessado e dissolvido entre coisas e reflexos fragmentados. Vórtice e escoamento dos lugares, o horizonte é nela estilhaçado, implodido em incontáveis galáxias. Astella, dizem ainda, é latim, “estilhaço”, uma variante de astula, fragmento, pedaço, lasca (de mármore ou madeira). É de astella, astula, que vem a palavra ateliê. O horizonte? Um devaneio ou uma cansada e teimosa esperança.